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Um chá nas nuvens

“Quando dei por ele, escondido num antiquário de província, nem queria acreditar. Embora nunca o tivesse visto, sabia-lhe a história e reconheci-o de imediato. Trata-se de um cartaz gigantesco, três metros de altura por um de largo, de papel levemente quebradiço pelo tempo (mas quase um século depois, isso é defeito menor), e sobre aquele tamanho todo cresce impressa a Torre dos Clérigos, recortada sobre um fundo amarelo vivo. No topo, distinguem-se duas figurinhas, dois ginastas vestidos de branco que acenam bandeiras vitoriosas. No fundo lê-se ´Um Chá nas Nuvens, assombrosa fita, Caldevilla Film, Porto´. Tão extravagante quanto a sua história, este é o cartaz que anunciou o primeiro filme com intenções publicitárias jamais realizado em Portugal. Um episódio que mete alpinistas e petit beurres, multidões e um visionário, o primeiro publicitário português com horizonte suficiente para ser digno desse título.
Raul de Caldevilla nasceu no Porto, de origem espanhola, em 1882, e estudou comércio no Porto e publicidade em Paris. Em 1914, fundou no Porto a ETP (abreviatura de ´Escritório Técnico de Publicidade´), inaugurando a criação e produção em Portugal de cartazes de grande formato para publicidade exterior. Por essa altura, homem de mil ofícios e muito mais ideias, Caldevilla já tinha sido actor, vice-cônsûl em Cádiz, agente comercial do governo português — divulgando o vinho do Porto pela América do Sul, por exemplo —, e viria ainda a ser empresário, publicitário, gráfico e realizador. Ligado à primeira produtora cinematográfica a nascer no Norte, a Invicta Filmes, realizou o seu primeiro filme em 1917: ´Um Chá nas Nuvens´, precisamente. Com o intuito de alardear a fama de uma nova marca de bolachas, este ser absolutamente fervilhante de ideias magicou o seguinte, nem mais nem menos: contratou os Puortollanos, pai e filho ginastas espanhóis com fama no mundo do espectáculo, e fê-los trepar os 75 metros de puro barroco da Torre dos Clérigos. A façanha juntou uma multidão como nunca até então acontecera no Porto, 150.000 almas suspensas em pavor e fervor ao longo de meia hora de escalada. E ao alcançarem o topo, o duo montou uma mesinha e tomou chá acompanhado, claro, pelos novos petit beurre da Fábrica Invicta. Aproveitando as alturas, daí lançaram milhares de folhetos publicitando as supremas bolachas.
A sagacidade de Caldevilla foi filmar tudo isto, lançando nas salas, pouco tempo depois, a tal ´fita assombrosa´, 17 minutos que esgotaram lotações dias seguidos, relatam os jornais da época. E porque não era homem de se ficar a dar polimento aos louros, no ano seguinte resolveu repetir a proeza em Lisboa, escolhendo a Basílica da Estrela como fatal pico urbano, para uma nova obra cinematográfica intitulada ´Desafiando a Morte´.
Pois andava o homem aranha francês içando-se nos cabos da ponte 25 de Abril, como já fizera há tempos escalando a mais alta torre do Parque das Nações para daí telefonar para todos os nossos ecrãs de televisão, quando me ocorreu: há algo de novo na publicidade em Portugal?”

Catarina Portas

(Crónica publicada no “Público” em Agosto de 2007)